Das cartas de amor perdidas
- Maro Klein
- 18 de jul. de 2024
- 5 min de leitura

Isadora borda na varanda. A tarde está muito quente. As ramas de véu de noiva pendem dos pilares da casa. Um cachorro preguiçoso dorme aos seus pés. O sol cega quem passa pela rua. Ela escuta o rádio, no volume máximo, vindo de dentro da sala. Presta atenção às notícias da grande guerra. O pai saiu para trabalhar, mas, à noite, se reunirão em torno da mesa de carvalho e ele pedirá a Isadora para trazer o mapa mundi de capa preta e lhe mostrar, nele, as últimas manobras dos aliados sobre o Terceiro Reich.
Isadora finalmente levanta-se da cadeira. Desgruda o vestido da barriga. Ajeita a saia. Caminha pela sala, desliga o rádio. Senta-se na escrivaninha que fica em frente à janela que dá para o jardim. Hora de escrever. Logo mais à tardinha o carteiro irá passar e levará a sua carta àquele remetente certo:
“Meu amado Fabricio
Estava aqui bordando peças do nosso enxoval e sonhando com o dia em que finalmente estaremos juntos para sempre.”
Para. Suspira. Sonha acordada. Depois volta para a realidade e pensa novamente nos arranjos práticos. Que dificuldade montar o enxoval. Tudo é racionado. Há dinheiro, mas não há o que comprar. Quanto mais deverão esperar para se casar? Quando essa maldita guerra vai acabar?
Seu coração acelera. Ela só quer estar com ele. Nua com ele, na cama. Passar as mãos pelos seus cabelos, sentir a força dos seus braços em torno dela, as peles grudadas, o calor, as pernas entrelaçadas, o torpor completo. Se perde naquele desejo agudo. É interrompida quando Janaína entra na sala, carregando uma cesta de roupas.
- Dona Isadora, vim agorinha mesmo lá das lavadeiras. Nem lhe conto.
Isadora revira os olhos para a mulher, que está às suas costas. Sabe que Janaína adora uma fofoca.
- O que foi Janaína?
- Então, Dona Isadora...
- Fale logo, por favor, tenho que terminar essa carta...
- Dona Isadora, não quero lhe dizer nada não....
- Janaína, por favor, diga logo!
- Então... a lavadeira da vizinha me contou que a vizinha viu seu Fabrício de braços dados com uma rapariga no domingo, lá em Livramento. Ela estava indo para a igreja bem cedo com a irmã dela, e eles pareciam estar vindo da noite. E a tal não era flor que se cheire não!
Isadora empalidece:
- Que história é essa, Janaína?? Você tem certeza disso??
- É verdade, dona Isadora! A vizinha só não teve a coragem de lhe contar... Mas tô lhe dizendo por que sabe o quanto gosto da senhora e do seu pai, e eu era muito amiga da sua mãe, que Deus a tenha!
Isadora sente o próprio rosto incendiando:
- Mas como pode isso?!
- Bom, a senhora já sabia da fama dele, não sabia?
- Sim, mas desde que noivamos ele se aquietou. Ele me jura isso sempre!
- Olha, não leve a mal, mas a senhora sabe o ditado: “cachorro que come ovelha, só matando”. Pode ir lá falar com a vizinha, vai ver que ela vai lhe confirmar. A gente sabe que ela é carola, mulher séria, não mente, não faz fofoca. Mas a situação é grave, a senhora não vai arriscar se casar com um sem-vergonha, vai?!
Isadora, mesmo relutante, vai até a vizinha, que confirma tudo:
- Minha filha, desculpa não ter lhe falado antes... fiquei sem coragem... Sei o quanto você ama esse homem, mas cá pra nós...ele não presta! Não acredite nele não... Eu vi com meus próprios olhos!! Beijava a rapariga no meio da rua!!
Isadora escuta a tudo, sem reação.
- Tu é tão bonita e jovem, o mar tá cheio de peixe minha filha!! Vai casar e vai se incomodar, esse daí não tem jeito. Andavam abraçados, bêbados, rindo alto! Acha que ele se importou contigo?? Todo mundo viu o que ele tava fazendo!
Isadora nada fala. Caminha devagar de volta para casa. Senta-se novamente na escrivaninha. Amassa a carta que tinha começado a escrever. E inicia outra.
“Seu canalha, como pode fazer isso comigo??! Jurou que me ama, que não existe nenhuma outra mulher pra ti! Tudo da boca pra fora! PRA FORA!!! E a trouxa aqui acreditando!!!
Descarrega toda a sua raiva naquelas folhas de papel azul. E finaliza:
“Nunca, nunca mais ouse por seus pés aqui em casa! Pra mim você morreu! MORREU!”
Quando termina, sente-se vazia. Sua alma saiu de casa. Não há ninguém lá. Espera o carteiro passar, entrega-lhe o envelope. Desaparece no quarto.
Naquela noite não se reuniu com o pai em torno do mapa mundi. A devastação foi completa. Sente-se espatifada, agonizando na beira do mar da Normandia. As ondas vem e vão sobre seu corpo inerte.
Nas semanas que se seguem, tem febre. Emagrece. Não dorme. Janaína corre de um lado para o outro, apavorada. A vizinha reza de joelhos todos os dias, arrependida. Faz promessas se Isadora se salvar. “Aonde eu tava com a cabeça de contar, meu Deus do céu!!”
Nenhuma notícia de Fabricio desde o envio da carta. Ninguém fala nada dele, ninguém o viu. As linhas telegráficas aparentemente foram todas cortadas pelos nazistas. As noites são escuras como os céus de Londres. Isadora sobrevive a muito custo, entre os escombros.
***
Passam-se três longos meses.
***
É domingo. O primeiro em que Isadora voltou a frequentar a missa, junto com o pai e Janaína. Lá encontra a vizinha, que a abraça como uma mãe e chora emocionada:
- Graças a Deus minha filha, você se recuperou! Vou cumprir minha promessa para a virgem, nunca mais vou comer carne!
Isadora caminha apoiada no braço do pai, pois ainda está fraca. Evita olhar para os vizinhos. Muitos ainda cochicham. “Achei que essa daí morria, morria de amor, já vi acontecer com uma guria lá em Bagé!”
Ao sair pelo portão do pátio da Igreja, Isadora, ainda de cabeça baixa, escuta a voz do pai, ao seu lado, dizendo:
- Fabrício! Meu filho, há quanto tempo!
O coração de Isadora para de bater por alguns segundos.
Todas as sirenes tocam. Os esquadrões da Luftwaffe e da RAF cobrem os céus.
A muito custo Isadora levanta os olhos, vê Fabrício parado, olhando fixo para ela, bem na sua frente.
Aqueles olhos profundos. Aquele rosto. Aquele rosto.
- Eu vou deixar vocês dois conversarem – diz o pai, já se afastando.
Um silêncio de morte se impõe. Todos instintivamente se afastam, entre temerosos, curiosos e respeitosos.
Fabrício se aproxima, e fala baixinho:
- Como você vai minha querida? Há quanto tempo! Tem mais de três meses que não recebo nenhuma carta sua... O que houve? Tenho tanta saudade! Tive que fazer uma viagem com meu pai, mas agora estou de volta.
O coração de Isadora para novamente de bater. Sua cabeça gira, as mãos estão molhadas. Lembra rapidamente daqueles três meses. Das noites de agonia, do enjôo na boca do estômago. Depois de um tempo, responde:
- Eu andei muito ocupada. Estava terminando nosso enxoval. Está bem difícil conseguir reunir todas as coisas que precisamos. Não tive tempo de mandar nenhuma carta.
Nada comentam.
Fabrício lhe dá o braço, e os dois avançam pela rua. Ambos seguem juntos, olhando um para o outro, de soslaio, e depois, para o calçamento, muito sorridentes.
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Texto dedicado àqueles dois... meus avós, por sua carta de amor perdida e tantas lindas histórias!
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