À espera
- Maro Klein
- 19 de dez. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 20 de dez. de 2024

Sentou-se no meio fio, exausto. A tarde caia, e completava horas e horas de faxina ininterrupta. Sem parar para comer, ou beber, havia baixado a cabeça e empurrado com o rodo pesado de madeira tanto lodo, tanto entulho, que perdera a noção do tempo. Sentou-se, e o mundo desabou junto com ele. Ele, dentro do seu macacão branco impermeável de mangas arregaçadas, com seus óculos de armação colorida.
Um companheiro, solidário, ao vê-lo em tal prostração, lhe alcança uma lata de Coca-Cola. Há, bendita Coca! Desliza pela garganta dando tanta satisfação que faz fechar os olhos. Ele se arrasta a muito custo, coloca a latinha sobre o colo, recosta-se a um muro, sentindo o ar gelado e úmido de junho a maltratar o rosto.
Tem a ruela em frente a si. Olha para o horizonte, onde nuvens cinza tornam-se prateadas pelos últimos raios de sol que insistem, teimosos, em iluminar, depois dos incontáveis dias de chuva. A chuva massacrante. A chuva enervante. A chuva que levou tudo – pontes, casas, bichos, gentes. A chuva que separou famílias, que trouxe o desespero, a escuridão, o nó na garganta.
Ele se pergunta o quanto mais irá aguentar. Depois de dias e dias sobre o computador, a plataforma finalmente ficou pronta. Conectou e mobilizou milhares de pessoas. Elas vieram, de vários lugares, as doidas, vieram. Largaram tudo e se juntaram àquela surpreendente irmandade. Várias circulam agora mesmo ao seu redor. De vários estados, de várias cidades, se aglomeram ali e se resumem a uma entidade: seres limpantes. Querem limpar, querem devolver um lar a quem perdeu quase tudo.
Mas sim, ele é um humano, nada mais do que um humano. A barriga dói de fome, o stress acumulado atiça a sua gastrite, as roupas se alargaram de repente, o olho treme. Ficar sentado ali, no chão, rente àquele muro, por alguns instantes, é uma verdadeira dádiva. Fica com o olhar perdido entre a rua e o horizonte prateado, quando, de repente, ela a enxerga.
Ela dobrou a esquina lentamente. Que altura teria? Cerca de um metro e sessenta, talvez. Magra, muito magra. Os cabelos castanhos e lisos chegam quase até a cintura. Seu rosto, de suaves traços indígenas, é doce e jovem. Se surpreende com a forma com que ela está vestida: toda de vermelho. Sim, está evidente que aquele vestido não é exatamente do seu número. Provavelmente veio da doação de alguém. Bem se nota que ela colocou um cinto na tentativa de que se ajuste.
Mas ela está muito arrumada. Suas botas são marrons, de bico muito fino. Carrega nas mãos um pequeno embrulho, em papel brilhante, vermelho vivo. Olha ao redor, como quem procura por rostos conhecidos. Ela tem toda a atenção dele agora, que a segue em todo o seu trajeto, ruela abaixo.
Ela para então, em frente a um dos casebres abandonados. Esse havia sido limpo ainda no início do dia. Mas não havia sinal dos moradores. Ficou ali, aberto, ventilando, à espera de alguém. Ela para em frente à porta. Mesmo estando de costas, ele percebe que está emocionada. Ela apalpa o que restou do batente da porta, respira fundo, e sobe o degrau, entrando com o pé direito.
Ele olha ao redor, entre as pilhas de entulhos e de rostos cansados, para ver se alguém percebeu a chegada da moça. Estão todos ocupados, recolhendo os materiais para concluírem a faxina. Se pergunta por um instante se ela seria uma miragem – será que está batendo bem da cabeça?
Mas eis que ela retorna do interior do casebre, e fica parada à porta. Então, percebe o olhar daquele outro. Sorri, desce o degrau e se aproxima. Ele olha para cima, para a miragem de vermelho. Consegue sentir o perfume dela dali mesmo. Creme de cabelo. Tem um toque de baunilha. Então pergunta:
- Oi, tudo bem? Você é moradora daqui?
- Sim, sou sim, aquela ali é minha casa. Vocês são o pessoal da faxina?
- Somos sim.
- Eu sei, muito legal, eu vi vocês na televisão, puxa, nem sei o que dizer, obrigada por terem limpado a nossa casa!
- De nada, que bom que você está aqui. Você sabe que ainda não dá para voltar, né? Não tem água, não tem luz, mas ao menos você pode começar a pensar em se organizar para quando der pra retornar. Onde você está ficando?
- Tô no abrigo, ali na brigada.
- Sério? Você está lá com a sua família?
Ao ouvir tal pergunta, ela abaixa a cabeça e mareja os olhos. Ele se arrepende de ter perguntado. Os dois ficam em silêncio por alguns instantes.
Ela então se lembra daquela madrugada. A madrugada gelada, havia umas duas semanas que ela e o noivo haviam chegado ao abrigo. Ali, ninguém dormia direito. Uns choravam, outros tremiam de frio. Os voluntários faziam o que podiam para acomodar a todos, mas ninguém saíra intacto daquela enchente.
Há dias ela se preocupava com a inquietude do noivo. Ele se recusava a comer. Não dormia, havia perdido a esperança, estava sem rumo. "Como vamos fazer?" – dizia – "perdemos tudo"... Ela não entendia. Sim, estava triste e abalada, como todos, mas tinha a ele. E isso era tudo que precisava para seguir em frente. "Nós vamos dar um jeito amor, a gente sempre deu, a gente sempre dá".
Mas, naquela madrugada, nada que ela dissesse encontrava eco. Ele fumava sem parar, no pátio. Se reunia com um grupo de desconhecidos, fazia planos confusos.
Quando quase amanhecia, em um ato de desespero, se amaram, ali mesmo, debaixo de cobertores, quietos e lentos, entre tantos outros corpos estendidos em um sono precário. Ela sentiu o peso dele e mais uma vez sabia que aquilo era tudo que queria, era tudo que a fazia se sentir viva. Quando terminaram, o noivo disse, "vou fumar mais um cigarro lá fora". Ela, exausta, adormeceu. No dia seguinte, ele havia desaparecido.
De volta ao presente, ela resume para o moço do macacão branco a sua breve história, como se fosse nada. Ele segue olhando para ela, ainda do chão, quase de boca aberta. Outros haviam se juntado aos dois e também escutaram, incrédulos. Então, quase sem coragem, ele pergunta:
- Mas porque você veio aqui hoje? (tem vontade de dizer, mas se contém: “E assim tão arrumada?”) Pergunto por que em breve teremos que ir embora. É muito perigoso ficar aqui depois que anoitece, com os saques, e tal, você sabe...
Ela novamente se cala diante de mais essa pergunta, e então lhe devolve outra:
- Você não lembra que dia é hoje?
Ele para por uns instantes. Olha para o relógio digital no pulso – hoje é 12 de junho... 12 de junho... 12 de junho... puta que pariu, dia dos namorados! – pensa - Não precisam falar nada, ela nota que o moço se deu conta.
É dia dos namorados, e sim, ela voltou pra casa na esperança de encontrar o noivo.
Agora é ele, ali sentado rente ao muro, que tem os olhos marejados. Olha ainda mais comovido para aquela moça de vermelho, que segura o pequeno embrulho, presente que os voluntários do abrigo ajudaram a organizar. Ela se vira, caminha novamente para sua casa vazia. Entra, fica lá, por um certo tempo.
Ainda tem esperança de que o noivo apareça. É dia dos namorados, afinal. Mesmo que não apareça, ela sabe que o ama. E o amando, vai, de alguma forma, esperar pra sempre por ele. Ainda que não venha, ainda que ele nunca volte.
A cada minuto que passa, a dor daquela espera aumenta. Mas ela segue, em pé, agora, já na escuridão do interior do casebre, o embrulho brilhante ainda nas mãos.
Inabalável.
Sem terem combinado nada, ela confia que o moço de macacão branco, sujo de lama, óculos coloridos, latinha de Coca-Cola no colo, ainda estará do lado de fora. De alguma forma ela sabe que ele não a deixará sozinha ali, não depois que anoiteceu. Sabe, não é seguro.
Então, seguem, os dois, no escuro, à espera.
(Texto dedicado ao Felipe, à Ina, à Tetê, e a todos que permaneceram em pé, na enchente de 2024 no Rio Grande do Sul).
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